" ... casas que já não existiam. Casas que tinham sido demolidas de alto abaixo. Não sei se já disse que me refiro à única parede ainda existente (...) via-se do lado de dentro. Viam-se nos diversos andares paredes de quartos com papeis anda colados, aqui e além, o começo do soalho ou do tecto. Ao lado das paredes dos quartos, espalhava-se ao comprido um espaço branco e sujo, e através dele, coleava, em movimentos repelentes, de moleza de verme, como que digestivos, a canelura aberta, com manchas de ferrugem, do cano de esgoto.
(...)
Mas o mais inesquecível eram as próprias paredes. A vida rija destes quartos não se deixava esmagar. Ainda lá estava (...), podia-se ver na tinta que tinha alterado ano após ano: o azul em verde bolorento, o verde em cinzento e o amarelo num branco velho e rançoso, a apodrecer. Mas estava também nos sítios mais frescos que se tinham conservado por trás dos espelhos, quadros e armários(...), estava em cada tira arrancada, nas bolhas húmidas do bordo inferior do papel, oscilava nos farrapos arrancados e transpirava ainda nas manchas sórdidas que existiam há muito. E destas paredes (...) emanava o ar dessas vidas, o ar obstinado, indolente e bafiento que nenhum vento varrera ainda.
Lá estavam os meios dias, as doenças e a exalações, o fumo dos anos e o suor que irrompe das axilas e faz os vestidos pesados, o hálito morno das bocas e o cheiro fermentado dos pés. Lá estava o acre da urina , o ardor da fuligem, o cheiro pardacento a batatas e o fedor pesado e viscoso do pingo rançoso. O cheiro doce e longo dos bebés, o cheiro a medo dos meninos de escola e o bafio das camas dos rapazes púberes. E viera-se juntar muito dos odores dos ventos domésticos, fracos e mansos, que ficam sempre na mesma rua. (...) É deste muro que continuo a falar(...) eu tê-lo-ia reconhecido (sempre)(...): tudo isto está em casa dentro de mim".
Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge
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